14 de agosto de 2015

De aluna negra à professora amefricana no Colégio Pedro II

De aluna negra à professora amefricana no Colégio Pedro II*


por Fabiana Lima**


Participar de uma mesa de debate cujo tema é o feminismo negro no palco  da  história,  a  partir  da  memória  de  Lélia  Gonzalez,  na  instituição escolar onde estudei por 7 anos e até bem poucas semanas lecionava para alunos do Ensino Médio regular e do PROEJA significa, para além da profunda emoção deste momento, o fechamento de um longo ciclo na minha vida. Neste meu pequeno texto, textículo como costumo brincar com os meus alunos, peço licença para falar menos de Lélia, a homenageada do dia e inspiração para todas nós aqui nesta mesa, e me lambuzar na minha própria história – de aluna negra à professora amefricana – dentro do Colégio Pedro II. Obviamente, nessa tessitura de lembranças, o pensamento de Lélia está presente enquanto referencial, facho de luz, fulguração criativa. O corpo risonho dela, que circulou por estes corredores enquanto aluna na década de 50 do século XX, se esparrama nas brechas de minhas palavras.  Só poderia ser desse jeito, que, como ela, o meu percurso profissional se encontra com a minha trajetória biográfica, em termos de questionamentos, engajamento político e busca rigorosa da compreensão de problemas sociais intimamente relacionados à maneira particular de eu ser/estar/pensar o mundo.
De 10 para 11 anos, meio a contragosto, ingressei na antiga quinta série  do  Colégio Pedro  II,  na  unidade  Humaitá.  Amedrontada  na  fila  de alunos de um colégio tão grande, diferente em tudo da escola particular de onde  eu  tinha  vindo,  troquei  olhares  com  outra  menina  negra,  Thatiana, minha amiga até hoje por sinal. Identificação imediata. Nossas aventuras e desventuras de adolescência dentro desta escola foram perpassadas pela precoce percepção de que éramos inferiores em tudo ou quase tudo: nos grupos de amigas e amigos, na preterição amorosa, nas escolhas que significavam de alguma forma distinção, no aproveitamento cognitivo, porque se Thati seguia a norma de que alunas e alunos negros viviam à beira da jubilação, devido às constantes reprovações, eu era a exceção, por ser uma aluna negra que passava direto.
Por outro lado, foi dentro desta instituição que eu soltei a voz pela primeira vez para falar publicamente sobre uma série de questões de fato relevantes para mim. Ano de 1988, 1ano do científico, aula de história com professor Ricardo: a atividade daquele dia consistia em debatermos sobre a abolição da escravização e sobre o racismo no Brasil. A roda estava formada. Todos os alunos brancos ou não negros entabulando altos discursos sobre o tema. Eu e mais duas amigas de pele escura ficamos encolhidas nas carteiras, querendo mesmo que um buraco abrisse para a gente entrar. Em meio àquela exposição de nossas fragilidades, passado o medo inicial, senti raiva, muita raiva por falarem de mim, por mim, sem que escutassem a minha dor, o meu ponto de vista, a minha cólera talvez. A fala de uma amiga bem branquinha da sala foi o estopim para que a minha voz tremida se levantasse alto, se levantasse para nunca mais calar. Só lembro que comecei falando: “acho um absurdo todos vocês que disseram não haver racismo no Brasil, pelo menos no RJ, porque todos vão à praia querendo pegar um bronze. Uma coisa é o bronzeado de verão, outra bem diferente é acordar e enfrentar o mundo com a pele que eu tenho sem precisar tomar sol...”. A partir daí, acredito, a voz destremeu, mas não tenho mais ideia do que disse. sei que  terminei  a  aula  me  sentindo  livre  e  forte.  Parece  que  a  notícia  se espalhou pelo segundo andar da escola, porque toda violência racial sofrida principalmente pelas alunas negras daquele corredor chegava a mim para que intercedesse de alguma forma. Lembro de uma amiga que morava na favela do Guararapes, no Cosme Velho, ter entrado na minha sala choramingando e dizendo: - Fabiana, me chamaram de neguinha. Eu nem esperei ela terminar: “e você é o quê? Você é o que, Flávia? Vai voltar lá e dizer pra esse menino que você é neguinha sim com muito orgulho.” Era assim que vivíamos: doloridas, em meio às violências diárias sem ter com quem contar diretamente.
Digo  diretamente,  porque  indiretamente  contávamos  com  alguns professores, como esse Ricardo de história, Fernando Décio de Filosofia, Helena Godoy, de português, que lembro, por suas ações político-pedagógicas em sala de aula, compreendiam as profundas desigualdades reproduzidas dentro do colégio. Particularmente, contei com professora Guaciara, também uma mulher negra, que foi a minha inspiração nos dois últimos anos de Colégio Pedro II, que na verdade é uma inspiração profissional até hoje, não só pela criatividade na composição das aulas de língua portuguesa, produção textual (expressão aprendida com ela, que fazia questão de deixar o termo “redação” de lado) e literatura, mas sobretudo pelo compromisso de discutir e de criar estratégias de transformação social a partir de uma relação produtiva com o conhecimento. Com ela aprendi a reescrever um texto, conscientizando-me das mudanças que precisam ser feitas para que ele atinja o objetivo desejado por mim enquanto autora. Com ela aprendi que texto literário bom é aquele que nos recompõe, tirando-nos do lugar conhecido. Com ela, tenho certeza, aprendi a ler, com toda a complexidade que essa prática implica.
Ter  voltado,  como  professora,  para  esta  mesma  instituição  uma década e alguns anos depois de ter saído como aluna foi um processo no mínimo contraditório, na medida em que pude me conscientizar das disputas de poder dentro do Colégio e, infelizmente, da presença de grupos de professores altamente elitistas, ligados a diversos segmentos políticos. Em síntese, o quadro encontrado em meados de 2003, quando ingressei aqui enquanto professora, foi marcado pelo desinteresse por parte dos meus colegas de departamento em estabelecer um diálogo produtivo, nas aulas de literatura pelo menos, com textualidades negras no Brasil e em países da diáspora africana, bem como em investigar as desigualdades sociais ocasionadas pelo racismo. Lembro, nos primeiros colegiados que participei, de a grande maioria dos meus colegas professores colocarem-se contrários à lei 10.639 recém promulgada, vista como uma imposição governamental marcada pelo que chamavam de um autoritarismo de esquerda. Tendo começado a participar de grupos do movimento negro durante a minha graduação em Letras, todo aquele discurso parecia-me extemporâneo, na medida em que meus colegas de trabalho ignoravam totalmente a agenda de luta política dos movimentos negros no Brasil, incluindo sobretudo as reivindicações de uma educação que contemplasse a história e os conhecimentos da população africana dentro e fora do Brasil. Diante desse panorama,   minhas   alunas   e   alunos   negros   continuavam   sozinhos, inferiorizados e sem refletir política e epistemologicamente sobre a própria condição social no mundo.
No intuito de contribuir para que o Colégio Pedro II se abrisse para as realidades  sociais  da  população  negra  no  Brasil,  produzi,  em  2005, juntamente com o professor de Geografia Daniel Vater de Almeida, hoje professor adjunto da UFPE, o projeto pedagógico AFROBETIZANDO, cujo principal eixo era a reflexão sobre o racismo, a partir da história e cultura da população negra, em perspectiva metodológica interdisciplinar, perpassando pela história, geografia, literatura, linguística, entre outras áreas.
De  uma  certa  forma,  o  menosprezo  às  epistemes  africanas  afro-brasileiras no Colégio Pedro II particularmente e na educação formal brasileira como um todo impulsionou-me ao desenvolvimento de um projeto de doutorado que aliou a teoria à minha prática de professora de literaturas. Nesse sentido, me detive no campo literário brasileiro, a partir da análise do formato e do mercado de livros didáticos de literatura, com o intuito de desnudar um modelo de ensino literário que pouco se modificou do século XIX até a contemporaneidade.
Aliás, foi durante o curso de doutoramento na cidade de Salvador que a relação com o Colégio  Pedro  II  começou  a  ficar  extremamente  tensa. Mesmo tendo sido concedido a mim um afastamento para estudos com remuneração, num período em que não havia nesta instituição normatização para tal direito, a direção da escola resolveu revogar a concessão feita dois anos  antes  de  completar  o  prazo  de  4  anos.  Ciente  da  importância  de finalizar o curso no programa que tinha escolhido, corri atrás legalmente dos meus direitos e não voltei para o RJ, apesar de toda pressão contrária, dentro e fora do meu próprio departamento.
Ao voltar sem ter concluído o curso, no final de 2010, em condições bem intranquilas, percebi que o Colégio ainda se recusava institucionalmente a se aproximar de uma educação para as relações étnico-raciais, que desse conta de discutir não só os legados africanos e indígenas em diversas áreas do conhecimento, mas sobretudo o racismo enquanto categoria estrutural de hierarquização social e operador ideológico delimitador de espaços e atitudes de exclusão. Naquele momento e talvez ainda até hoje, nem professores nem direção geral (hoje reitoria) assumiam para si a importância de uma mudança curricular radical, que deixasse de lado a perspectiva marcadamente eurocêntrica da sistematização do conhecimento nesta instituição. Particularmente, quando voltei para sala de aula, em abril de 2011, continuei fazendo o meu trabalho de trazer para o aluno textualidades e corporeidades negras, infelizmente, nas brechas do currículo eurocentrado da minha área, língua portuguesa, e das possibilidades de parceria com outros professores que aceitavam esse trabalho.
Na medida em que o epistemicídio, termo tão bem esmiuçado na tese de Sueli Carneiro A construção do outro como não-ser como fundamento do ser,  fere  de  morte  os  considerados  o  “outro”  na  tradição  ocidental, apagando-os enquanto sujeitos cognoscentes, é importante levar em conta que fazer circular conhecimentos africanos e indígenas na escola implica diferentes formas de se relacionar com o conhecimento. Só para dar um exemplo básico, quando um departamento de língua portuguesa faz a opção político-pedagógica de priorizar livros com edição comercializada recentemente ignora não só livros raros que, por trazerem um tipo de conhecimento considerado incômodo, pouco são reeditados, mas sobretudo outras formas de produção do conhecimento, como aquelas baseadas na vocalidade e na corporeidade, tão caras às tradições africanas e indígenas.
No início do ano letivo de 2014, tanto a composição do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), que em sua primeira coordenação elegeu a brava Alessandra Pio, quanto a aula inaugural com o professor Kabengele Munanga indicavam mudanças sutis, porém já significativas da assunção institucional de promover políticas para a diferença. Em poucos meses, uma série de atividades, projetos pedagógicos, eventos políticos de luta contra o racismo  dentro  dos  muros  do  Colégio  Pedro  II  começaram  a  surgir  aos tantos, sobretudo alunas e alunos negros passaram a levantar a voz quando eram chamados de macacos ou impedidos de entrar no colégio com um fio de conta do candomblé ou mesmo quando eram obrigados a ficar calados ao escutar piadas racistas e sexistas dos próprios professores.
Da minha parte, a pedido do estudante Vinícius Garcia, desenvolvi também no ano letivo de 2014, com o professor de português do campus Humaitá II Osmar Soares da Silva Filho, o Fórum Permanente de Discussão das Relações Étnico-Raciais. Deixo com os próprios participantes do Fórum no campus Engenho Novo II as impressões sobre esse projeto:
“Durante o último trimestre de 2014, colocamos em prática um projeto novo, cujo objetivo principal era trazer ao Campus um debate acerca das relações  étnico-raciais.  Com  o  Fórum  Permanente  de  Discussão  das Relações Étnico-Raciais – esse é o nome do projeto – conseguimos mobilizar alguns alunos e professores a discutir e pensar sobre a questão. Através de encontros semanais, esses se reuniam para uma espécie de “roda de conversa”, na qual, em cada sessão, eram discutidos temas relacionados ao assunto, com o auxílio de materiais didáticos, tais como textos, vídeos, fotografias e depoimentos. A interação entre participantes era dada através de uma abordagem dinâmica, contrastante àquela usada em sala de aula: não havia professor, nem alunos, e sim pessoas trocando conhecimentos e experiências. 
(...) O projeto nasceu da necessidade de se discutir as questões que envolvem a divisão da nossa sociedade em etnias e raças no âmbito escolar. Em um país tão diversificado como o Brasil, onde a miscigenação é, provavelmente, o fator mais característico da formação de sua população, era de se esperar que esse fosse um exemplo louvável no que diz respeito à democracia racial. No entanto, é preciso reconhecer que a realidade ainda dista muito do ideal e que   continua   a   interferir   direta   e   indiretamente   nas   mais   diversas organizações que a compõem, inclusive na escola. Apesar de já se ter tido conquistas significativas ao longo dos últimos anos, como a política afirmativa de cotas raciais, o caráter da educação brasileira persiste profundamente etnocêntrico, excluindo as mais diversas contribuições ao conhecimento, proporcionadas por povos não-europeus. Como resultado, a formação educacional proporcionada pelo Colégio Pedro II ainda segue esses parâmetros que transcendem séculos de omissão da colaboração desses povos à formação da nossa nação e do mundo. Consequentemente, muitos alunos ainda não são totalmente contemplados pelo ensino oferecido. (Vinicius Garcia)
Como estudante, sempre admirei o Colégio Pedro II por incentivar o conhecimento dos direitos sociais em seus alunos, mas sempre senti falta de um aprofundamento, de um espaço de  conversa, livre das ordens de fala da sala de aula, livre do cronograma escolar. O Fórum trouxe isso para mim. Desde pequena escuto histórias contadas por meus pais das dificuldades que passaram na vida, ela por ser mulher em uma sociedade machista, e ele por ser negro em uma sociedade racista. Com descendência indígena e africana, ele sempre sofreu racismo, começando dentro da família quando o apresentava aos amigos como “primo distante” ou “conhecido da família” por ele ser negro em uma família majoritariamente branca. Seu maior herói sempre foi seu avó, que passava pelas mesmas opressões que meu pai, e ensinava que ele não deveria “abaixar a cabeça pra ninguém”, que ele era tão importante e inteligente quanto todos os outros familiares. Por isso, sempre me interessei por esses assuntos, sempre tive vontade de compartilhar minhas experiências, de contar as histórias da minha família e de ouvir sobre outras pessoas também. O Fórum tem me ajudado a descobrir minha própria identidade. E tem me ajudado a entender mais minha militância, tenho certeza que cada pessoa que compareceu às reuniões do Fórum guarda conhecimentos aprendidos lá, conhecimentos trocados e compartilhados, que poderão ser repassados e ajudarão  a  formar  diferentes  ideias  e  pontos  de  vista,  um  começo  de mudança no colégio, nas pessoas e no Brasil. (Paloma Ripper)
Sei  que  um  projeto  como  o  Fórum  possui  amplitude  limitada,  na medida em que esses conhecimentos circulam dentro da escola, mas sem serem considerados conhecimentos dignos de fazerem parte da grade curricular oficial. Concordo com Paloma. Isso é só o começo... O melhor mesmo, em termos de transformação social dentro dos muros do Colégio Pedro II, será uma mudança curricular profunda, a partir de estudos de práticas educativas que não se prendam ao conhecimento eurocentrado. Nesse sentido, quem sabe, até o pretuguês de Lélia Gonzalez faça parte do conhecimento construído para todos os nossos alunos, sejam eles negros, indígenas, brancos ou de qualquer outro grupo étnico-racial.
Minha trajetória no Colégio Pedro II realmente chegou ao fim, com esperança de que dias melhores sejam construídos por nós, homens e mulheres negras cis e trans, indígenas e todo e qualquer grupo social não hegemônico. No entanto, o meu caminho enquanto intelectual negra é longo, dura, na verdade, a exata medida da minha própria vida, porque implica não só a minha inserção enquanto mulher negra no campo da pesquisa científica e da produção do conhecimento, mas também a luta contra uma monocultura do saber e uma recusa à ideia de neutralidade científica. Assim, ingressando agora na Universidade Federal do Sul da Bahia sei que sou um facho da intelectualidade   radical   de   Lélia   Gonzalez,   Beatriz   Nascimento,   Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, sei que levo comigo o pensamento, o sopro e o corpo de todas as intelectuais negras sentadas ao meu lado nesta mesa, porque amefricana nós somos... Amefricana eu sou.

* Palestra proferida no encontro "Lélia Gonzalez - o feminismo negro no palco da história; ocorrida no NEAB do Colégio Pedro II, campus Centro, em 28/04/2015.


** A professora Dra. Fabiana de Lima Peixoto é, atualmente, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia. É colaboradora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros como membro do Grupo de Pesquisas e atua nas redes sociais com o canal Beleza de Preta, também no Facebook.
Obrigada por esse corajoso e encorajador depoimento, Fabiana! 





-----

Nenhum comentário:

Postar um comentário