De aluna negra à professora amefricana no Colégio Pedro II*
por Fabiana Lima**
Participar de
uma mesa de debate cujo tema é o feminismo negro no palco da
história, a partir
da memória de
Lélia Gonzalez, na
instituição escolar onde estudei por 7 anos e até bem poucas semanas
lecionava para alunos do Ensino Médio
regular e do PROEJA significa, para
além da profunda emoção deste
momento, o fechamento de um longo ciclo na minha vida. Neste meu pequeno texto,
textículo como costumo brincar com os meus alunos, peço licença para falar
menos de Lélia, a homenageada do dia e inspiração para todas nós aqui nesta
mesa, e me lambuzar na minha própria história – de aluna negra à professora
amefricana – dentro do Colégio Pedro II. Obviamente, nessa tessitura de
lembranças, o pensamento de Lélia está presente enquanto referencial, facho de luz, fulguração criativa. O corpo risonho dela, que circulou
por estes corredores
enquanto aluna na década de 50 do século XX, se esparrama nas brechas de minhas palavras. Só
poderia ser desse jeito, já que, como ela, o meu percurso profissional se encontra com a
minha trajetória biográfica, em termos de questionamentos, engajamento político
e busca rigorosa da compreensão de problemas sociais intimamente relacionados à
maneira particular de eu ser/estar/pensar o mundo.
De 10 para 11 anos, meio a contragosto, ingressei na antiga
quinta série do Colégio Pedro II, na
unidade Humaitá. Amedrontada
na fila de alunos de
um colégio tão grande, diferente em tudo da escola particular de onde
eu tinha vindo,
troquei olhares com
outra menina negra,
Thatiana, minha amiga até hoje por sinal. Identificação imediata. Nossas
aventuras e desventuras de adolescência dentro desta escola foram perpassadas
pela precoce percepção de que éramos inferiores em tudo ou quase tudo: nos
grupos de amigas e amigos, na preterição amorosa, nas escolhas que significavam
de alguma forma distinção, no aproveitamento cognitivo, porque se Thati seguia
a norma de que alunas e alunos negros viviam à beira da jubilação, devido às
constantes reprovações, eu era a exceção, por ser uma aluna negra que passava
direto.
Por outro lado, foi dentro desta instituição que eu
soltei a voz pela primeira vez para
falar publicamente sobre uma série de
questões de fato relevantes para mim.
Ano de 1988, 1o ano do científico, aula de história
com professor Ricardo: a atividade daquele dia consistia em debatermos sobre a
abolição da escravização e sobre o racismo no Brasil. A roda estava formada. Todos
os alunos brancos ou não negros entabulando altos discursos sobre o tema. Eu e
mais duas amigas de pele escura ficamos encolhidas nas carteiras, querendo
mesmo que um buraco abrisse para a gente entrar.
Em meio àquela exposição de nossas fragilidades, passado o medo inicial, senti
raiva, muita raiva por falarem de mim, por mim, sem que escutassem a minha dor, o meu ponto de vista, a minha cólera
talvez. A fala de uma amiga bem branquinha da sala foi o estopim para que a
minha voz tremida se levantasse alto, se levantasse para nunca mais calar. Só lembro que comecei falando: “acho um
absurdo todos vocês que disseram não haver racismo no Brasil, pelo menos no RJ, porque todos vão à praia querendo
pegar um bronze. Uma coisa é o bronzeado de verão,
outra bem diferente é acordar e enfrentar o mundo com a pele que eu tenho sem
precisar tomar sol...”. A partir daí, acredito, a voz destremeu, mas não tenho mais ideia do que disse. Só sei
que terminei a
aula me sentindo
livre e forte.
Parece que a notícia se espalhou pelo segundo andar da escola,
porque toda violência racial sofrida principalmente pelas alunas negras
daquele corredor chegava
a mim para que intercedesse de alguma forma. Lembro de uma amiga que
morava na favela do Guararapes, no Cosme Velho,
ter entrado na minha sala choramingando e dizendo: - Fabiana, me chamaram de
neguinha. Eu nem esperei ela terminar: “e você é o quê? Você é o que, Flávia? Vai
voltar lá e dizer pra esse menino que você é neguinha sim com muito orgulho.”
Era assim que vivíamos: doloridas, em meio às violências diárias sem ter com
quem contar diretamente.
Digo diretamente,
porque
indiretamente
contávamos
com
alguns professores, como esse Ricardo de história, Fernando Décio de Filosofia, Helena Godoy, de português, que lembro, por suas ações político-pedagógicas em sala de
aula, compreendiam as profundas desigualdades
reproduzidas dentro do colégio. Particularmente, contei com a professora Guaciara, também uma mulher negra, que foi a minha inspiração
nos dois últimos anos de Colégio Pedro II, que na verdade é uma inspiração
profissional até hoje, não só pela criatividade na composição das aulas de
língua portuguesa, produção textual (expressão aprendida com ela, que fazia
questão de deixar o termo “redação” de lado) e literatura, mas sobretudo pelo
compromisso de discutir
e de criar estratégias de transformação social
a partir de uma relação produtiva com o conhecimento. Com ela aprendi a
reescrever um texto, conscientizando-me das mudanças que precisam ser feitas
para que ele atinja o objetivo desejado por mim enquanto autora. Com ela aprendi
que texto literário bom é aquele
que nos recompõe, tirando-nos do lugar conhecido. Com ela, tenho certeza, aprendi a ler, com toda a complexidade que essa prática
implica.
Ter voltado,
como
professora,
para
esta
mesma
instituição
uma década e alguns anos depois de ter saído como aluna foi um processo no
mínimo contraditório, na medida em que pude me conscientizar das disputas de
poder dentro do Colégio e, infelizmente, da presença de grupos de professores altamente elitistas, ligados
a diversos segmentos políticos. Em síntese, o quadro encontrado em meados de 2003, quando
ingressei aqui enquanto professora, foi marcado pelo desinteresse por parte dos
meus colegas de departamento em estabelecer um diálogo produtivo, nas aulas de
literatura pelo menos, com textualidades negras no Brasil e em países da
diáspora africana, bem como em investigar as desigualdades sociais ocasionadas pelo racismo. Lembro,
nos primeiros colegiados que participei, de a
grande maioria dos meus colegas professores colocarem-se contrários à lei
10.639 recém promulgada, vista como uma imposição governamental marcada pelo
que chamavam de um autoritarismo de esquerda. Tendo
começado a participar de grupos do movimento negro durante a minha graduação em
Letras, todo aquele discurso parecia-me extemporâneo, na medida em que meus
colegas de trabalho ignoravam totalmente a agenda de luta política dos
movimentos negros no Brasil, incluindo sobretudo as reivindicações de uma
educação que contemplasse a história e os conhecimentos da população africana
dentro e fora do Brasil. Diante desse panorama,
minhas
alunas
e
alunos
negros
continuavam sozinhos, inferiorizados e sem refletir política e epistemologicamente sobre a
própria condição social no mundo.
No intuito de contribuir
para que o Colégio Pedro II se abrisse para as realidades sociais da
população negra no
Brasil, produzi, em
2005, juntamente com o professor de Geografia Daniel Vater de Almeida, hoje professor adjunto
da UFPE, o projeto pedagógico AFROBETIZANDO, cujo principal eixo era a reflexão
sobre o racismo, a partir da história e cultura da população negra, em
perspectiva metodológica interdisciplinar,
perpassando pela história, geografia, literatura, linguística, entre outras
áreas.
De uma certa
forma,
o
menosprezo
às
epistemes
africanas
e afro-brasileiras no Colégio Pedro II particularmente e na educação
formal brasileira como um todo impulsionou-me ao desenvolvimento de um projeto de doutorado que aliou a teoria à
minha prática de professora de literaturas. Nesse sentido, me detive no campo
literário brasileiro, a partir da
análise do formato e do mercado de livros didáticos de literatura, com o
intuito de desnudar um modelo
de ensino literário que pouco se modificou do século
XIX até a contemporaneidade.
Aliás, foi durante o curso de doutoramento na cidade de Salvador que a relação com o Colégio
Pedro II começou
a ficar extremamente
tensa. Mesmo tendo sido concedido a mim um afastamento para estudos com
remuneração, num período em que não havia nesta instituição normatização para
tal direito, a direção da escola resolveu revogar a concessão feita dois anos antes
de completar o
prazo de 4
anos. Ciente
da importância de finalizar o curso no programa que tinha
escolhido, corri atrás legalmente dos meus direitos e não voltei para o RJ, apesar de toda pressão contrária, dentro e fora do meu próprio departamento.
Ao voltar
sem ter concluído o curso, no final de 2010, em condições bem intranquilas, percebi que o Colégio ainda se recusava
institucionalmente a se aproximar de
uma educação para as relações étnico-raciais, que desse conta de discutir não só os legados africanos e
indígenas em diversas áreas do conhecimento, mas sobretudo o racismo enquanto
categoria estrutural de hierarquização social e operador ideológico delimitador
de espaços e atitudes de exclusão. Naquele
momento e talvez ainda até hoje, nem professores nem direção geral (hoje reitoria) assumiam
para si a importância de uma
mudança curricular radical, que deixasse de lado a perspectiva marcadamente
eurocêntrica da sistematização do conhecimento nesta instituição.
Particularmente, quando voltei para sala de aula, em abril de 2011, continuei fazendo o meu trabalho de
trazer para o aluno textualidades e corporeidades negras, infelizmente, nas brechas do currículo eurocentrado da minha área,
língua portuguesa, e das possibilidades de parceria com outros professores que aceitavam esse trabalho.
Na medida em que o epistemicídio, termo tão bem esmiuçado na tese de Sueli Carneiro A construção do outro como não-ser
como fundamento do ser, fere de morte os considerados o “outro” na tradição
ocidental,
apagando-os enquanto sujeitos cognoscentes, é importante levar em conta que
fazer circular conhecimentos africanos e indígenas na escola implica diferentes
formas de se relacionar com o conhecimento. Só para dar um exemplo básico,
quando um departamento de língua portuguesa faz a opção político-pedagógica de
priorizar livros com edição comercializada recentemente ignora
não só livros raros que, por trazerem um tipo de conhecimento considerado
incômodo, pouco são reeditados, mas sobretudo outras formas de produção do
conhecimento, como aquelas baseadas na vocalidade e na corporeidade, tão caras
às tradições africanas e indígenas.
No início
do ano letivo de 2014,
tanto a composição do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), que em sua primeira coordenação elegeu
a brava Alessandra Pio, quanto a aula inaugural com o professor Kabengele
Munanga indicavam mudanças sutis, porém já significativas da assunção
institucional de promover políticas para a diferença. Em poucos meses, uma
série de atividades, projetos pedagógicos, eventos políticos de luta contra o
racismo dentro dos
muros do Colégio
Pedro II começaram
a surgir aos tantos, sobretudo alunas e alunos negros
passaram a levantar a voz quando eram chamados de macacos ou impedidos de entrar no colégio com um fio de conta do candomblé ou mesmo quando
eram obrigados a ficar calados ao escutar piadas racistas e sexistas dos
próprios professores.
Da minha parte, a pedido do estudante Vinícius Garcia,
desenvolvi também no ano letivo de 2014, com o professor de português do campus Humaitá II Osmar Soares da
Silva Filho, o Fórum Permanente de Discussão das Relações
Étnico-Raciais. Deixo com os próprios participantes do Fórum no campus Engenho
Novo II as impressões sobre esse projeto:
“Durante o último trimestre
de 2014, colocamos em prática um projeto novo, cujo objetivo principal era trazer ao Campus um debate acerca das relações étnico-raciais. Com
o Fórum Permanente
de Discussão das Relações Étnico-Raciais – esse é o nome
do projeto – conseguimos mobilizar alguns alunos e professores a discutir e
pensar sobre a questão. Através de encontros semanais, esses se reuniam para
uma espécie de “roda de conversa”, na qual, em
cada sessão, eram discutidos temas relacionados ao assunto, com o auxílio de materiais
didáticos, tais como textos, vídeos, fotografias e depoimentos. A interação entre participantes era dada através de uma abordagem dinâmica,
contrastante àquela usada em sala de aula: não havia professor, nem alunos, e sim pessoas trocando
conhecimentos e experiências.
(...) O projeto nasceu da
necessidade de se discutir as questões que envolvem a divisão da nossa
sociedade em etnias e raças no âmbito escolar.
Em um país tão diversificado como o Brasil,
onde a miscigenação é, provavelmente, o fator mais característico da formação de sua população, era de se esperar
que esse fosse um exemplo louvável no que diz respeito à democracia racial. No
entanto, é preciso reconhecer que a realidade ainda dista muito do ideal e
que continua a
interferir direta e
indiretamente nas mais
diversas organizações que a compõem, inclusive na escola. Apesar de já se ter tido conquistas significativas ao longo dos últimos anos, como a
política afirmativa de cotas raciais, o caráter da educação brasileira persiste
profundamente etnocêntrico, excluindo as mais diversas contribuições ao
conhecimento, proporcionadas por povos não-europeus. Como resultado, a formação
educacional proporcionada pelo Colégio Pedro II ainda segue esses parâmetros
que transcendem séculos de omissão da colaboração desses povos à formação da nossa nação e do mundo.
Consequentemente, muitos alunos ainda não são totalmente contemplados pelo
ensino oferecido. (Vinicius Garcia)
Como estudante,
sempre admirei o Colégio Pedro II por incentivar o conhecimento dos direitos
sociais em seus alunos, mas sempre senti falta de um aprofundamento, de um
espaço de conversa, livre das ordens de fala da
sala de aula, livre do cronograma escolar.
O Fórum trouxe isso para mim. Desde pequena escuto histórias contadas por meus
pais das dificuldades que passaram na vida, ela por ser mulher em uma sociedade
machista, e ele por ser negro em uma sociedade racista. Com descendência indígena
e africana, ele sempre sofreu racismo, começando dentro da família quando o
apresentava aos amigos como “primo distante” ou “conhecido da família” por ele
ser negro em uma família majoritariamente branca. Seu maior herói sempre foi seu avó, que passava pelas mesmas opressões que meu pai, e ensinava que ele não deveria “abaixar
a cabeça pra ninguém”, que ele era tão importante e inteligente quanto
todos os outros familiares. Por isso, sempre
me interessei por esses assuntos, sempre tive vontade
de compartilhar minhas
experiências, de contar
as histórias da minha família
e de ouvir sobre outras pessoas também. O Fórum tem me ajudado
a descobrir minha
própria identidade. E tem me ajudado a entender mais minha militância, tenho certeza que cada pessoa que compareceu às reuniões do
Fórum guarda conhecimentos aprendidos lá, conhecimentos trocados e
compartilhados, que poderão ser repassados e ajudarão a
formar diferentes ideias
e pontos de
vista, um começo
de mudança no colégio, nas pessoas e no Brasil. (Paloma Ripper)
Sei que um
projeto como o
Fórum possui amplitude
limitada, na medida em que esses
conhecimentos circulam dentro da escola, mas sem serem considerados
conhecimentos dignos de fazerem parte da grade curricular oficial. Concordo com
Paloma. Isso é só o começo... O melhor mesmo, em termos de transformação social
dentro dos muros do Colégio Pedro II, será uma mudança curricular profunda, a
partir de estudos de práticas educativas que não se prendam ao conhecimento
eurocentrado. Nesse sentido, quem sabe, até o pretuguês de Lélia Gonzalez faça
parte do conhecimento construído para todos os nossos alunos, sejam eles
negros, indígenas, brancos ou de qualquer outro grupo étnico-racial.
Minha trajetória no Colégio Pedro
II realmente chegou
ao fim, com a esperança de que dias melhores sejam construídos por nós, homens e
mulheres negras cis e trans, indígenas e todo e qualquer grupo social não
hegemônico. No entanto, o meu caminho enquanto intelectual negra é longo, dura,
na verdade, a exata medida da minha própria vida, porque implica não só a minha inserção enquanto mulher negra no campo da pesquisa científica e da produção do conhecimento,
mas também a luta contra uma monocultura do saber e uma recusa à ideia de neutralidade científica. Assim,
ingressando agora na Universidade Federal do Sul da Bahia sei que sou um facho
da intelectualidade radical de
Lélia Gonzalez, Beatriz
Nascimento, Sueli Carneiro,
Nilma Lino Gomes, sei que levo comigo o pensamento, o sopro e o corpo de todas as intelectuais negras sentadas ao meu lado nesta mesa, porque amefricana
nós somos... Amefricana eu sou.
* Palestra proferida no encontro "Lélia Gonzalez - o feminismo negro no palco da história; ocorrida no NEAB do Colégio Pedro II, campus Centro, em 28/04/2015.
** A professora Dra. Fabiana de Lima Peixoto é, atualmente, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia. É colaboradora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros como membro do Grupo de Pesquisas e atua nas redes sociais com o canal Beleza de Preta, também no Facebook.
Obrigada por esse corajoso e encorajador depoimento, Fabiana!
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